Barvikha, Moscou, Rússia, 22 de Abril de 2009.
Num luxuoso Hotel & SPA existe uma grande variedade de lojas de grife. E por ali anda uma jovem com algumas bolsas de compras, SARAH PETROVICH RACHMANINOFF, 19 anos, cabelo liso e loiríssimo a altura da cintura, olhos azuis acinzentados, pele muito branca, corpo escultural e pernas longas. Ela é daquele tipo de moça que num simples ato de caminhar, parece desfilar, atraindo a atenção de todos. Sua roupa é um vestido no look preppy.
Mas, Sarah tem o seu olhar roubado ao parar em frente a uma vitrine e se apaixonar por um par de botas pretas. Entusiasmada, a garota adentra a loja.
Uma vendedora se aproxima e pergunta em russo: — Olá? Como posso ajudá-la?
Objetiva, Sarah responde: — Fácil. Eu desejo ter aquele par de botas — a jovem aponta para a peça. — Eu calço 42 — (que é referente a 40 no Brasil).
A vendedora se retira para o estoque, só que outra cliente, que ali já estava, ao ouvir o interesse de Sarah pelo mesmo par de botas, se vira para trás e olha para a jovem com ar de arrogância. A garota faz uma expressão de indiferença.
Vinda do estoque, retorna outra vendedora. Ela cochicha algo com a outra cliente, que faz um movimento de positivo com a cabeça e olha para Sarah com um sorriso esnobe. A jovem não compreende tal atitude, até sua atendente chegar.
— Senhorita, tenho uma má notícia — menciona a vendedora cheia de cuidado. — Aquele é o único par disponível no tamanho desejado.
— Não há problema. Eu o quero mesmo assim.
— Isso vai ser difícil, senhorita — a vendedora faz menção para a outra cliente. — É que aquela senhora já fechou negócio.
Soltando suas bolsas no chão, Sarah vai em direção a mulher, que está passando o cartão de crédito.
— Com licença. Quanto à senhora quer por estas botas?
— Como? — interroga a mulher que tem uma voz estridente e irritante.
— O que a senhora ouviu. Eu preciso destas botas. Não! — ela ergue o dedo indicador para cima. — Na verdade, eu necessito delas.
— Minha linda filha também... ela é modelo.
— E eu sou Sarah Petrovich, atual campeã mundial de patinação no gelo. Sou a promessa russa para os jogos de 2010 em Vancouver.
— Huh... — a mulher ri com cinismo. — Eu sei quem você é. Eu só me pergunto se você será a mesma revelação olímpica que sua mãe foi — ela comenta pegando a sacola com as botas e dando as costas à Sarah.
Irritando-se, a jovem diz: — Escuta aqui, ô senhora — a jovem agarra na bolsa. — Você é uma insolente, e eu só vou soltar, quando esta sacola for minha.
A mulher olha com desdenho para Sarah e em seguida para as vendedoras.
— Vocês vão deixar esta situação ridícula acontecer? Isto é um insulto a mim.
Quando as vendedoras e a gerente tentam tomar uma providência, Sarah alega: — Eu sou uma atleta importante da Rússia, e posso tudo! Eu sempre consigo o que quero!
Minutos depois, vemos Sarah caminhar com o nariz erguido pelas ruas de Barvikha com suas várias sacolas, incluindo a das botas. Ela segue até uma Limousine preta, e com o auxílio do motorista, a jovem entra no veículo. No entanto, o iPhone dela toca, e sua postura muda ao ficar séria, mas quando aceita a ligação, a feição é outra.
Espontânea e sorridente, Sarah diz: — Alô, mãe! Como está? — ela faz uma pausa longa. — Verdade? Eu vou fazer o seguinte... já que eu estou perto, vou dar uma passada por ai, ok? — é feita uma breve pausa. — Então, tá! Cinco minutos. Beijo, mãe! Tchau.
Após finalizar a ligação, a jovem retorna a ficar séria e com um olhar triste.
— Pavlov, me leve à clínica.
— Sim, senhorita.
Noutra parte da Limousine, Sarah pega uma bolsa de viagem e puxa algumas roupas.
— Pavlov, eu preciso de privacidade.
— É pra já, senhorita Sarah — diz o motorista levantando a janela de vidro deslizante acústica.
Vinte minutos se passam e a Limousine estaciona em frente de uma clínica psiquiátrica. O motorista abre a porta do veículo e Sarah sai. O diferencial, é que a jovem está com uma roupa básica: tênis rasteiro branco, calça jeans surrada e uma camisa baby look rosa claro. E prendendo o cabelo em rabo-de-cavalo, ela adentra ao estabelecimento.
Sarah vai até a recepção e é bem recebida por uma atendente que lhe entrega um crachá de visitante. A jovem segue por um longo corredor branco e para ao chegar numa porta, abrindo-a, vendo uma senhora de 72 anos sentada sobre a cama. Ela é NASTASSJA PETROVICH.
— Olá, mãe! — exclama Sarah muito sorridente.
— Oi, Laura! Você demorou. Estava no treino?
— Estava sim — Sarah se aproxima da idosa e a beija na testa.
— Já não vejo à hora de sair daqui pra te ver patinar... você é tão maravilhosa.
— Aprendi o melhor com a senhora... mãe.
— Como é bom te ouvir dizer isso — comenta Nastassja com um sorriso comovente. — Você havia se tornando tão orgulhosa... eu não te criei assim... esnobe. Mas o mundo que sua vó lhe apresentou, em Paris, te estragou... mas você mudou... voltou a ser minha linda filhinha.
Sarah com lágrimas nos olhos, apenas concorda: — Sim.
— Lembre-se, Laura, eu tenho muito orgulho de você.
A garota não consegue conter as lágrimas e chora em silêncio.
Se deitando, Nastassja diz: — Eu estou com sono.
— Então durma em paz... — Sarah dá um beijo na testa da senhora adormecida e sussurra para si mesma. — ...vovó.
A jovem sai do quarto e encosta a porta.
Já em casa, Sarah sai de uma banheira onde contém água quente e sais de ervas. Ela se enrola numa toalha rosa, segue até um closet e começa a se vestir — calça lisa rosa e camisa de manga longa lilás. Ao terminar, a jovem senta a frente de seu computador, também rosa, e digita, no Google, o nome LAURA PETROVICH, aparecendo sites com pesquisas sobre a tal mulher. A garota clica sobre uma das opções e abre uma reportagem: “Laura Petrovich: marcada por triunfo, fracasso e morte.”
Na matéria relata que Laura era a filha única da grande patinadora artística russa, Nastassja Petrovich, que hoje vive numa clínica especializada para portadores da doença de Alzheimer. Herdando o legado da família, Laura, que em 1988 tinha 18 anos, conquistava pódios importantes, mas nunca estava satisfeita com as medalhas de prata e bronze, ela idealizava o topo. Então, um mês antes das Olimpíadas de Inverno em Calgary, Canadá, a atleta foi pega num caso amoroso com um dos jurados, porém, esta é parte da bomba, pois a moça havia acabado de se casar com WLADIMIR RACHMANINOFF, o filho mais velho de um poderoso empresário russo. Com a notícia percorrendo o mundo, Laura foi punida e proibida de competir por oito anos, resumidamente, isto significava o fim de sua carreira, porque aos 26 anos já estaria velha. E assim foi perdida a oportunidade de ter o ouro olímpico. Quatro anos à frente, Laura ainda estava casada com seu marido, que a perdoara, contudo, ela viveu entre altos e baixos com relação à depressão. Frustrada com sua vida, Laura tomou muitos calmantes, entrou em seu carro, acelerou 110 km/h e o atirou contra uma árvore, deixando sua filha de 2 anos para trás... Sarah.
Alisando uma foto através do monitor, Sarah questiona: — Por que, mãe? — ela chora inclinando a cabeça para baixo. — Por que você era assim? — há um choro silencioso. — Eu só tento ser como você. Mas quando eu ouço as pessoas falarem...
A tristeza toma conta da imponente e mimada Sarah. Só que sem demorar muito, a jovem se recompõe, veste um casaco branco, pega uma bolsa rosa de patins e sai do quarto batendo a porta.
Há mais um avanço no tempo, agora de 1h, e os nossos olhos estão focados num belo bosque onde tem um lago congelado. É de tardinha e não há ninguém além de Sarah. Ela está sentada num banco massageando os pés quando repara um rapaz, não muito atraente, se aproximar.
— Eu já te vi?
Com indiferença, e sem olhar para ele, Sarah responde: — Só se foi pela TV.
— Não... acho que é de outro lugar.
Sarah para de massagear os pés e afirma: — Impossível.
O rapaz tem uma recordação.
— Já sei. É você a neta de dona Nastassja.
Na mesma hora, Sarah altera o comportamento.
— Como?
— Eu sou um estagiário na clínica e, em uma ligeira ocasião, as observei. Eu li o prontuário dela, sua avó acha que você é a sua mãe, e você não desmente... é uma boa neta.
— Obrigada — ela começa a calçar os patins.
— Na verdade, eu te vi duas vezes hoje...
Sarah para de fazer o que está fazendo e olha para o rapaz.
Ele continua a explicar: — ...Uma foi na clínica e a outra foi numa loja de calçados. Você esbarrou em mim ao sair... após tomar a bolsa da mão da minha mãe.
— Eu paguei por elas!
— Tudo bem, isso não vem ao caso. O que quero dizer, é que pude ver duas pessoas opostas em você. Uma é a garota rica e mimada, enquanto a outra, cuida da avó com maturidade. Então, qual das duas você é?
Desarmada, Sarah para pra pensar por segundos e responde com sinceridade.
— Eu só sei que sou o espelho da minha mãe.
— Você pode até se parecer com ela esteticamente, mas por dentro... eu não acredito.
— Por quê?
— Porque me parece que você se comporta assim para senti-la por perto... para sentir que ela nunca te abandonou.
— O que você é? Psicólogo?
— Estou no último ano. Sou Yerik Molotov — ele estende a mão.
— Uau! Você é bom! Sou Sarah Petrovich — ela aperta a mão dele.
— Obrigado — eles terminam de se cumprimentar formalmente. — Bem, eu tenho que ir... boa patinação — o rapaz se levanta do banco. — E cuidado com o tornozelo, sei que ele é valioso para a pátria russa.
Sarah sorri envaidecida e o rapaz vai embora.
Cinco minutos depois, a vemos deslizar sobre o gelo de frente e de costas, com muita intimidade, sendo graciosa com uma bailarina.
Ganhando velocidade, Sarah aumenta o grau de dificuldade ao executar manobras como: o Triplo Axel, seguido de uma combinação de dois quádruplos, um giro aberto e um complicado trabalho de pés (Footwork), com a sequência de movimentos feitos em linha reta, círculos ou em forma de serpentina (“S”). Então, surge um comentário pretensioso: — Huh...! Patinando assim, é impossível eu não ser ouro — a atleta esboça um largo sorriso.
Novamente a jovem desliza para ganhar pressão e efetua um triplo Salchow com uma aterrissagem perfeita, seguido, porém inesperadamente, de um Triplo Lutz e um Triplo Mapes fechado. Ela patina com um extraordinário desempenho no quesito mérito técnico e interpretação artística. E para encerrar sua rotina, executa duas lindíssimas piruetas (Spins): um “Sit-spin” e um “Camel”. A queda lenta de flocos de neve engrandece a beleza de tal momento.
Encantada com o novo cenário, Sarah se entusiasma e recomeça a patinar. Todavia, quando inicia um “Upright Sinp”, o gelo se excede e a garota mergulha numa água congelante, vários graus abaixo de zero. A jovem começa a afundar rápido, pois os seus patins pesam, e com muito desespero, ela se debate, mas sem sucesso de retornar a superfície.
Quase inconsciente, Sarah toca, com o tronco, o fundo do lago, fazendo flutuar um pouco de areia. Com a calmaria, a jovem olha para cima e vê, bem distante, o buraco para a saída. Só que prendendo a respiração, ela fecha os olhos, desistindo ao ter seu o corpo resfriado pela água fria, certamente morrerá de hipotermia. Porém, algo acontece...
Um brilho azulado brota no peito de Sarah e toma conta do seu corpo.
De forma inconcebível, a luz se expande e congela toda a água do lago em gelo denso. Faz-se um terrível silêncio de expectativa, mas logo ocorre uma estrondosa explosão e a jovem é ejetada para cima, inacreditavelmente com vida. Fragmentos duma gigantesca geleira voam pelos ares e espatifam-se na enorme cratera que era a lagoa.
Sufocada e com os olhos esbugalhados, Sarah bate sobre uma pedra de gelo lisa e desliza, com uma das nádegas, por 2 metros, mas os seus patins fincam num outro bloco e ela para. Confusa e assustada, a jovem questiona: — O que houve aqui? — e olhando para os lados, fica atônita — Como...? “Sobrevivi” — pensa.
Ao olhar para suas mãos, Sarah observa faíscas da luz azulada percorrê-las, mas que logo somem.
— Ãh? — Sarah fica com expressão de interrogação.